Bullying na garrafa

Homens e mulheres, meninos e meninas se beneficiam de uma sociedade violenta no Brasil, não em partes iguais. Não falo da violência óbvia de assaltos ou balas perdidas. Me refiro àquela psicológica, interior, que atinge meninas com uma crueldade que desconheço em outros lugares. Basta andar de ônibus, trem, metrô ou caminhar nos centros das grandes cidades para testemunhar dezenas de exemplos de desrespeito de homens de todas as idades com crianças e adolescentes encaradas como um vulgar objeto sexual.

Não é apenas o que lhes dizem ao ouvido, o que já seria grave. É o que fazem. O desrespeito violento com que encaram as meninas pela rua (entre outras coisas) me envergonha como ser humano. Sim, porque isto é violência. E elas, por uma resposta padrão e falta de referência de uma sociedade mais educada, às vezes se ofendem e às vezes – prefiro pensar que uma minoria – estranhamente se sentem idolatradas. Todos gostamos de ter poder, mesmo que irreal ou temporário, e essa parte perversa é a que supostamente beneficia uma mulher. No fundo, vivemos um jogo subliminar de poder. Além disso, sempre há alguém capaz de ganhar dinheiro com essa relação distorcida, inclusive as mulheres.

Assisti – e acredito que parte minoritária do país compartilha minha opinião – estarrecida há alguns anos uma “dança da garrafa” em que crianças (meninas) dançavam alegremente em óbvia alusão a uma cena sexual sobre garrafa. O país, em sua maioria, não se importou que a tevê repetisse estas cenas à exaustão, como continua sem se importar que dezenas de programas exibam mulheres com pouquíssima roupa que dançam sem parar para “entreter” o público. Houve reações e críticas, mas nada de vulto, tanto que isso durou muito tempo.

A exploração sexual feminina não é privilégio da tevê brasileira. Mas, de novo, desconheço país que a tenha levado tão longe. E pior: sem que ninguém se importe em discuti-la, denunciá-la, criticá-la. Tenho certeza que meu comentário será considerado moralista e puritano por muitos que passarem por aqui. Mas já fui adolescente e vitima do desrespeito, da humilhação na rua, no ônibus.

Como acabar com esse alimento à violência? Mudando a sociedade. O problema é que o Brasil não quer mudar. A máquina de dinheiro que alimenta Big Brothers e suas cópias também reforça o culto ao corpo, o investimento em ginástica, dietas, revistas especializadas, cirurgias, esteticistas, fabricantes de cosméticos, agências de publicidade, uma indústria, enfim, muito bem instalada que nem sonha com uma vida mais humana ou digna para todos, pois isso ameaçaria seus negócios. Não é só negócio, claro.

Esta é a parte mais clara do contexto, mas a porção submersa do problema é que as mulheres não querem mudar a sociedade. Quando quiseram, mudaram – mesmo que as conquistas hoje pareçam perdidas na guerra cotidiana. Continuam educando seus filhos homens de maneira diferente das filhas mulheres, reproduzindo preconceitos. Querem seguir competindo pela beleza, juventude, acessórios etc etc (a lista é interminável e não excludente) com outras mulheres, porque foram ensinadas por séculos a viver em guerra entre si por um objetivo principal, o homem. Tudo isso é uma generalização e vai contrariar centenas, milhares de homens e mulheres que não compactuam com essa lógica. Mas falo da maioria.

Podemos discutir o que começou primeiro, mas não podemos negar a lógica da competição intrínseca presente desde o começo da vida para uma mulher. Fomos ensinadas a agradar (aos olhos e aos ouvidos dos homens), enfeitar o ambiente, ser simpáticas, afáveis. Parece absurdo que isso ainda seja assim, 200 anos depois do início do feminismo, mas as mulheres se sentem em débito se eventualmente não seguem o roteiro. E as que comumente não seguem este roteiro são vítimas de um dos piores preconceitos que conheço, estimulado igualmente por homens e mulheres: são “mal amadas”. Ninguém relaciona a falta de sexo de um homem ao seu mau humor, embora todo ser vivo, seja um panda ou um ser humano mereça e dependa do amor de outro para sobreviver.

Todos os pontos estão interligados. É por isso que a violência diária do bullying eletrônico não surpreende e vamos continuar a ver casos como os do Rio Grande do Sul e Piauí em que adolescentes se suicidaram após terem imagens íntimas compartilhadas na internet. A violência não começou na internet, mas é ampliada por ela. Nenhum meio eletrônico respeita a adolescência no Brasil. Nem o rádio, onde os anúncios são frequentemente de mau gosto e/ou criminosos com as mulheres. Um país que não respeita suas meninas na rua não as respeitará em nehum outro local.

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